A minha sombra
Temo e receio ser mais negro do que a minha própria sombra ou, porventura, mais sombreado do que ela. Tremo como varas verdes quando me ocorre a hipótese de ser mais bidimensional do que ela. Temo e receio ser mais surdo do que a minha sombra ou, acaso, menos original do que ela. Temo e tremo porque temo quando tremo. À minha sombra nunca vi fingir, mas já me vi a hipocrisia. Já me torci todo, já usei espelhos e máquinas de filmar e nunca lhe captei um deslize, uma fraqueza, uma hesitação que seja, mas já, eu, borrei uma pintura sem esboçar qualquer movimento. Já a vi desdobrar-se em duas, três, quatro, inúmeras e eu sempre fui tanto ou menos do que um só. Já a vi esticar-se até ao infinito ou desaparecer sem que ninguém desse por isso, mas já me escaparam por não os conseguir agarrar ou me esconderam por não os agradar. Já a tentei ultrapassar, fintar ou perseguir sem qualquer êxito, mas raramente não me ultrapassam quando me fintam e me perseguem. À minha sombra já insultei, já denunciei, já renunciei, já evitei e nunca a descontrolei. Não a vi corar, não a vi engelhar a testa, não a vi torcer o nariz, não a vi morder os lábios, não a vi cerrar os dentes, não a vi arregalar os olhos, nada. Nem uma ténue perturbação. Começo a ter acessos de vontades de me parecer com ela, de ser confundido com ela, de ter a minha existência sobreposta à dela. Começo a não perceber que sombra é a minha e quem sou eu para a minha sombra. Começo a duvidar quem sombreia o quê.
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