terça-feira, fevereiro 28, 2006

A minha sombra

Temo e receio ser mais negro do que a minha própria sombra ou, porventura, mais sombreado do que ela. Tremo como varas verdes quando me ocorre a hipótese de ser mais bidimensional do que ela. Temo e receio ser mais surdo do que a minha sombra ou, acaso, menos original do que ela. Temo e tremo porque temo quando tremo. À minha sombra nunca vi fingir, mas já me vi a hipocrisia. Já me torci todo, já usei espelhos e máquinas de filmar e nunca lhe captei um deslize, uma fraqueza, uma hesitação que seja, mas já, eu, borrei uma pintura sem esboçar qualquer movimento. Já a vi desdobrar-se em duas, três, quatro, inúmeras e eu sempre fui tanto ou menos do que um só. Já a vi esticar-se até ao infinito ou desaparecer sem que ninguém desse por isso, mas já me escaparam por não os conseguir agarrar ou me esconderam por não os agradar. Já a tentei ultrapassar, fintar ou perseguir sem qualquer êxito, mas raramente não me ultrapassam quando me fintam e me perseguem. À minha sombra já insultei, já denunciei, já renunciei, já evitei e nunca a descontrolei. Não a vi corar, não a vi engelhar a testa, não a vi torcer o nariz, não a vi morder os lábios, não a vi cerrar os dentes, não a vi arregalar os olhos, nada. Nem uma ténue perturbação. Começo a ter acessos de vontades de me parecer com ela, de ser confundido com ela, de ter a minha existência sobreposta à dela. Começo a não perceber que sombra é a minha e quem sou eu para a minha sombra. Começo a duvidar quem sombreia o quê.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

…a besta aguardava… bem quieta.

Uma andança tinha iniciado num local fora deste mundo.

Figuras e cores com tons estranhos.
Lógicas difusas emaranhadas em trilhos confusos.
Não passariam de fáceis aglomerados de metáforas?...

O abalo adviria na virtude.
O início do meio revelou-se marcante…
O fogo esboçava agora a gravura de todo um dia.

Fantasmas regressavam à luz, oriundos do fresco escuro, naturais da que todos condenam.

Passo ante passo flutuava para o meu lar, o meu recanto, o meu reduto.
Identifiquei as formas familiares da porta, do portal, da portada do meu sempre.
Os momentos e as reminiscências recentes dissiparam-se assim que o terror entrou pelos meus olhos…
Inacreditável a impossibilidade encarnada de tal conjuro.
Os olhos esmeralda e negros da besta regelaram o instinto, semearam o pavor rude, regado com enxurradas de adrenalina e tremores.
O tempo abrandava até rapidamente parar.
“Não pode ser…” três palavras que representam a impressão que inundou todo o meu vitalismo.

Após a inércia chegou a ameaça, era agora uma presa. Percebi-o com o elevar súbito, bruto e brutal daquele ser.
Reparei em mim, que tinha virado costas… Precipitava-me numa fuga.
Combatia o ar, competia com o tempo e o espaço, tinha que escapar.
Angariava adrenalina de todos as partículas de oxigénio… contudo via-me amaldiçoado, numa descomedida, anormal e lenta fuga à inevitabilidade.
Atrás não compreendia nada… barulhos não recordava. A dominadora visão abundou para gerar o descontrolo elementar.

Uma gota de desespero brotava depois da anterior cair…

Os condiscípulos do desaire, o distúrbio e a incredibilidade conquistavam as réstias de razão.

Mas com o avizinhar da consciência, o salto assomou…
Abri os olhos e repousei com ideias a fervilhar, assustado, um bocado assustado.

Um ser desmesurado, vermelho, impetuoso, astuto, prodigioso, foi o meu sobressalto… a minha história… o meu pesadelo.



quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Ainda Cinco

Chegaste lentamente, bem devagarinho
Mostraste um mundo em ti, um universo
O teu jeito entornava carinho
No casulo dos sonhos sentiu-se um progresso.

A mais incrível Primavera tinha começado
Não resisti ao seu doce encanto
Flores ímpares e o Astro-rei sem passado
Embarquei a torrente, num devaneio pranto.

A luz domava a noite com o ameno calor
O escuro vencia o dia com magia
Nascia um acanhado ardor…
…sugeria que apenas a ti queria.

A fantasia era plena, real e infindável
A doçura do aperto persistia e cativava
Nutria a mais linda história interminável
E eu, por ti cativo, incitava.

Hoje, como sentido no outro dia…
…a chama emana e evoca o passado
Sinto-te dentro, algures… por ti me perderia
Careço de ti, tanto, que me larga abismado!

...alien